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Espionagem, propina ou fantasia: a misteriosa construção do primeiro Fórmula Vee no Brasil

Espionagem, propina ou fantasia: a misteriosa construção do primeiro Fórmula Vee no Brasil

O Aranae foi o pioneiro no Brasil com base num projeto americano adquirido de forma ilegal e
suborno, segundo declarou seu próprio construtor dez anos depois.

Por Fernando Santos

 

Uma declaração perdida na história revela um lado obscuro e misterioso do início da Fórmula Vee no Brasil. Ao longo de uma reportagem publicada em 1976, o primeiro construtor de um FVee no país revelou que usou de espionagem e pagou propina de 200 dólares para ter acesso ao projeto original na fábrica do mais bem sucedido carro da categoria nos EUA.

O Aranae foi o primeiro Fórmula Vee construído no Brasil. Ele foi apresentado no final de 1966 pelos empresários Alexandre Freitas Guimarães, Silvano Dalle Molle e Carlos Eduardo Maluf Estefno no Salão do Automóvel de São Paulo. No ano seguinte, a categoria fez sua primeira prova no país.

Dez anos depois da apresentação do carro, Alexandre Freitas Guimarães, conhecido como Gordo ou Lorde Alexandre, deu uma surpreendente entrevista à revista Placar, edição nº 310, que chegou às bancas em 14 de março de 1976. A reportagem com o título “As Fórmulas das Fábricas” apresentava três empresas nacionais em destaque na construção de carros de Fórmula Vee, Super-V e Fórmula Ford.

 

O empresário paulista Alexandre Freitas Guimarães com o piloto Ludovino Peres, na apresentação do primeiro FVee brasileiro, em 1966.
Crédito: reprodução revista Auto Esporte.

 

Na ocasião, Alexandre Freitas Guimarães acabara de se associar ao austríaco Otto Kuttner para iniciar uma nova geração do seu bem-sucedido Super-V, que havia sido campeão nacional em 1975. Foi então que ele descreveu, de forma surpreendente, como se deu o seu início na Fórmula Vee.

O texto na página 48 da mencionada edição da revista Placar descreve o empresário paulista como um homem “excêntrico” e com “admiração por um bom uísque” e traz o seguinte relato:

Primeiro (Alexandre Freitas Guimarães) foi visitar a Autodynamics nos Estados Unidos, onde quis comprar os direitos de fabricação do Fórmula Vê norte-americano. Teria de pagar 8 mil dólares de royalties. Achou a pedida muito alta, preferindo “molhar” a mão do vigia com 200 dólares em troca de dez minutos de espionagem. Quando deixou a sede da Autodynamics em Riverside, Califórnia, guardava nos bolsos rascunhos de desenhos, o suficiente para construir aqui a sua cópia – melhorada. Fundou a Aranae, construiu quatro Vê e convidou alguns cobras da época para pilotá-los: Carol Figueiredo, Ludovino Peres, Totó Porto e José Carlos Pace.

A Placar completa o relato com a seguinte declaração de Alexandre Freitas Guimarães: “O sucesso foi total”, descrevendo ainda que o empresário fez a afirmação “com ares de triunfo”.

Para ver a reportagem completa da Placar, clique aqui.

 

Capa da edição número 310 da revista Placar, de março de 1976, com a polêmica revelação (crédito: reprodução). Na sequência, a reportagem publicada pela revista Placar onde o empresário Alexandre Freitas Guimarães revelou que pagou propina para espionar o projeto de um FVee da Autodynamic (crédito: reprodução).

 

Segundo mais vitorioso

De fato, o Aranae foi um sucesso. De acordo com levantamento do portal www.lorenagt.com, que reúne o maior acervo sobre o princípio da Fórmula Vee no Brasil, a fabricante foi a segunda mais vitoriosa na história inicial da categoria. De 1967 a 1970, foram realizadas 32 provas de FVee no país. O Aranae conquistou oito vitórias e ficou atrás apenas dos Fitti-Vê, construídos por Emerson e Wilson Fittipaldi Júnior, que somaram 16 triunfos.

 

Reportagem da revista Quatro Rodas enaltecendo a vitória do carro construído por Alexandre Freitas Guimarães na prova dos 500 km de Interlagos (crédito: reprodução). Na sequência, a reportagem da revista Auto Esporte com a vitória de Totó Porto, com um Aranae, na famosa prova dos 500 km de Interlagos, em 1967 (crédito: reprodução).

 

A maior conquista do Aranae foi na épica prova dos 500 km de Interlagos, em 1967, vencida por Totó Porto. A revista Quatro Rodas destacou o resultado com a seguinte manchete: “Alexandre conquista Interlagos”. Era como o empresário se sentiu após superar os Fitti-Vê de Emerson e Wilsinho, apontados como favoritos. Numa prova tumultuada e marcada por acidentes, Emerson chegou em quatro, Wilsinho foi o quinto e José Carlos Pace, também com um Fitti-Vê, foi o segundo.

Confira neste link um vídeo histórico sobre a famosa prova dos 500 km de Interlagos, incluindo imagens da apresentação oficial do Fitti-Vê com Emerson Fittipaldi: https://www.youtube.com/watch?v=rLs0auhmZDQ

 

Projeto misterioso

Mas até a publicação da entrevista de Alexandre Freitas Guimarães na Placar, a versão oficial da chegada do primeiro Fórmula Vee ao Brasil tinha semelhança apenas com a sua origem nos EUA, mas não havia nenhuma referência a espionagem ou pagamento de propina para a aquisição do projeto. A revista Auto Esporte Nº 16, de dezembro de 1966, trouxe com exclusividade a reportagem com o título “O primeiro Fórmula V nacional”. A publicação descreve assim como nasceu o Aranae:

Alexandre Freitas Guimarães, paulista apaixonado pelo automobilismo, viajando pelos Estados Unidos teve a oportunidade de sentir de perto o “fenômeno” chamado Fórmula V e concluiu que este tipo de categoria poderia dar um impulso maior ao automobilismo nacional. De volta ao Brasil, Alexandre reuniu-se a Silvano Dalle Molle e Eduardo Estefno, partindo para a fabricação do primeiro protótipo na “Sprintwagen”, em São Paulo.

A reportagem da AutoEsporte não explica de onde saiu o projeto para a construção do carro e não há nenhuma referência à Autodynamics. Veja a reportagem completa em http://www.lorenagt.com/formulave/050-03-Aranae.htm

A Autodynamics é reconhecida como pioneira e uma das mais importantes empresas na fabricação de Fórmula Vee no início da categoria, nascida nos EUA. Sua sede ficava em Marblehead, no estado de Massachusetts, no Nordeste americano. Em seu primeiro ano, em 1964, fabricou 186 carros.

 

Projeto de um Fórmula Vee da empresa americana Autodynamics (crédito: reprodução internet). Também pode-se ver as imagens de um FVee original da Autodynamic de 1966, mesmo modelo que foi utilizado para a  construção do Aranae, que estava à venda na internet por 6 mil dólares (crédito: reprodução internet).

 

Riverside, do outro lado do país, era um polo de crescimento da Fórmula Vee em razão de seu autódromo, construído em 1957 e demolido em 1989, e que chegou a receber uma prova de Fórmula 1 em 1960. A Califórnia, estado tradicional de apaixonados por carros, também logo se transformou num grande mercado para os fabricantes de FVee. Em 1966, quando Alexandre Freitas Guimarães revelou ter visitado a empresa, a Autodynamics fabricou 98 carros.

 

Declaração apimentada?

A versão de espionagem e propina na fabricação do Aranae é vista atualmente com surpresa e descrédito, mesmo sem poder contestar os três empresários responsáveis pelo lançamento do carro. Alexandre Freitas Guimarães e Carlos Eduardo Maluf Estefno já morreram. Não foi possível, até a publicação deste texto, localizar ou ter informações sobre Silvano Dalle Molle.

Quem conviveu com eles na época não acredita na versão apresentada na entrevista à Placar. Massimo Pedrazzi foi piloto e competiu em diversos carros fabricados por Alexandre Freitas Guimarães nas décadas de 1960 e 1970, todos de turismo. Ele não competiu de FVee, mas diz que nunca soube de espionagem ou pagamento de propina na construção do Aranae.

Segundo Pedrazzi, que hoje mora na Suíça e corre de Porsche em provas vintage, Alexandre Freitas Guimarães tinha uma pequena oficina de preparação de carros no Morumbi e acompanhava de perto o nascimento da Fórmula Vee. Motivado pelo surgimento da categoria, ele realmente viajou e teria trazido um chassi comprado nos EUA, copiando assim integralmente o modelo americano.

Ele nunca comentou nem eu soube de qualquer história envolvendo espionagem ou pagamento de propina para ter acesso ao projeto original. Ele trouxe o chassi e copiou tudo”, diz Pedrazzi.

Responsável pela retomada da Fórmula Vee no Brasil em 2011, o empresário Roberto Zullino conheceu Alexanre Freitas Guimarães nos anos 1960 e acompanhou o nascimento da categoria no Brasil. Zullino também não acredita na versão declarada à Placar.

A história do Aranae é verdade, era uma cópia do Autodynamics. Mas essa história de suborno para mim deve ter sido invenção dele para apimentar a entrevista. Uma coisa é ter o desenho por 8 mil dólares, outra é olhar por 200. Não dá para copiar olhando”, afirma Zullino.

 

Segunda e última fase

Em abril de 1968, apenas dois anos depois do lançamento do carro, Alexandre Freitas Guimarães vendeu a Aranae para a Fábrica Sprint, no Rio, dos pilotos Nelson Bastos e Ricardo Barley, como publicou a revista Auto Esporte numa pequena nota de 11 linhas. Na época a Fórmula Vee já começa a perder o brilho após seu início estrondoso, principalmente em razão de a VW ter reduzido o apoio à categoria.

 

O primeiro protótipo de um FVee brasileiro em comparação com um Fusca, carro que deu origem à categoria.
Crédito: reprodução revista Auto Esporte.

 

Quando foi entrevistado pela Placar, em 1976, Alexandre Freitas Guimarães já havia retomado a construção de carros para competir na Super-V. Desta vez, ele recebeu a autorização para utilizar o modelo Kaimann, da Áustria, uma das mais tradicionais equipes da categoria e que continua em atividade até hoje. Foi na Kaimann que Niki Lauda iniciou sua carreira no automobilismo, competindo de FVee nos anos 1960.

Com o projeto original da Kaimann, desta vez devidamente autorizado pelo fabricante, um dos carros construídos por Alexandre Freitas Guimarães venceu a primeira prova da Super-V no Brasil, em 1974, pilotado por Ingo Hoffmann.

Para a temporada de 1976 da Super-V, o empresário paulista montou no Rio a Delta Racing, em parceria com o austríaco Otto Kuttner, num período em que as corridas voltavam a atrair a atenção no país. Emerson Fittipaldi já havia conquistado dois títulos mundiais na F1 e seu irmão Wilsinho acabara de lançar a equipe Copersucar. Nos novos bólidos da Super-V, nascia ainda um piloto promissor: Nelson Piquet.

Dentro de um cenário favorável ao automobilismo e que voltava a despertar o interesse de novos fabricantes, Alexandre Freitas Guimarães encerrou assim sua entrevista à Placar: “Construtor não fica rico, isso é mais do que certo. Mas se tiver uma outra atividade, dá para ganhar algum. Sobra tempo para isso”.

 

 

O piloto Amauri Mesquita com um Aranae, em prova de Fórmula Vee em Niterói, em 1967. Crédio: site Autoclassic.

 

 

 

 


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